30 de abr. de 2009

O novo...

E então a palavra se refaz.
Refaz-se o coração.
E aqui começa o novo, a nova década, os novos escritos.
Que venham.
Estou pronto!

Sina

Um olho aberto
Um outro fechado
Um todo luz
Um todo gruta

Aquele se fecha
Este se abre
Aquele escurece
Este se aquece

Nunca se veem
Tocam-se nunca
Ou quase, quando
De leve, se beijam

Cerúleo e carmim
Tocam sinos
Amanhece

Carmim e cerúleo
Cantam pássaros
Anoitece

E entre eles,
Prata sobre ouro
Ouro sobre prata,
Caminho

30/04/2009
23:00

Desenho: Flávio Moreira - 01/02/1983

28 de abr. de 2009

Sobre honestidade e censura

Quando comecei esta página pensei em colocar aqui todos os textos que escrevi e que, por alguma razão guardei. Só que eu o fiz de maneira aleatória. A maioria dos textos não está na ordem em que foram escritos. Nem estavam todos, até hoje. E por que não estavam todos? Porque não conseguia resistir à auto-censura. Quando leio as coisas que tenho guardadas sempre as vejo como arrebatadas demais, apaixonadas demais, tolas demais, exageradas demais. Mas será que tenho o direito de, uma vez tendo decidido colocar essa fase de escrita em exposição, negar agora a verdade que ela carrega? Que eu era imaturo demais no labor das letras, que eu não tinha limites para os sentimentos que esses escritos carregavam, que eu os achava melhores do que de fato são. Mas seriam eles menos uma parte de mim só porque agora olho para eles com o olhar de quem viveu um pouco mais, estudou um pouco mais, acomodou paixões, sedimentou pensares, compreendeu sofrimentos e angústias da juventude que não poderiam ser compreendidos naquele momento em que neles esteve mergulhado? Creio que não. Tenho que admitir que não.

Talvez pouco do que sou hoje existiria não fossem todas aquelas emoções desmedidas, todos aqueles pensamentos que me fizeram um prolixo misturador de palavras. Porque estando dentro do turbilhão, não havia como firmar pé, por-se ereto e caminhar firme, com todas as certezas nas mãos. E, no entanto, não é assim que caminhamos quando somos jovens? Com todas as angustiantes certezas nas mãos, mas que esvaem-se como poeira entre os dedos? Nada fica, a não ser as angústias. Que também se aquietam, se amalgamam e então se mostram no seu devido tamanho.

Então, por que julgar esses instantâneos de juventude? Não seria mais honesto deixá-los assim, à mostra, porque descrevem uma parte da verdade do que eu sou? Não somos a soma de todas as nossas experiências? Por que envergonhar-se delas? Entretanto, é isso que me vem agora, como se eu quisesse que aquele garoto de 20 anos soubesse o que somente mais 20 anos puderam ensinar. Não é muito justo. Aquele era outro, ainda que fosse o mesmo que eu sou hoje.

Engraçado: não me casei, não tive filhos, e neste exato instante faço comigo mesmo o que todos os pais juram que jamais farão com seus filhos - repito os mesmos erros e cobro de mim mesmo recuado em 20 anos a mesma 'maturidade' que só agora vislumbro (a conquista está ainda longe - o que há é ainda apenas um vislumbre). Aliás, alguém aí sabe me dizer o que é 'maturidade'? Quando descobrirem, por favor, me expliquem.

Não, não posso ser pai de mim mesmo. É preciso deixar o filho crescer, quebrar a cabeça, dar murros em ponta de faca. Até porque - ora vejam! - não sou um bom exemplo de pai: ainda assisto desenhos, leio gibis, compro carrinhos (que adultamente chamo de 'filmes de animação', 'graphic novels' e 'miniaturas em escala', respectivamente). Cobro de mim jovem uma postura adulta e hoje sou ainda uma risível criança por dentro!

Tudo isso para tentar amassar coragem bastante para publicar aqui esses disparates juvenis. Ou, mais, para justificá-los. Entre a honestidade e a censura, e em favor do respeito à liberdade de cada um, melhor a honestidade.

Teu Sangue

I
Estou correndo
Estou correndo
Estou morrendo
Estou tremendo

Estou aqui
Estou jorrando
Eu sou teu sangue
Coagulando

Estou crescendo
Estou secando
E tu estás
Agonizando

Meu irmão vidro
Te cortou
Mas o teu grito
Não ecoou

Mas você chora
E eu por vingança
Fico a sorrir
Da tua esperança

II
Estou sangrando
Estou secando
Eu sou teu sangue
Agonizando

Teu sofrimento
Parte de mim
E do amigo vidro
Que é tão ruim

Injustiçado
Por tua raça
Amargurado
Por tua desgraça

Eu sou teu sangue
Estou morrendo
E aquele tempo
Que já passou
Passou depressa
Coagulou

Flávio Moreira
Setembro 1980

Resumo circense

O palhaço não faz mais graça.
O palhaço não ri mais.
O palhaço descobriu seus algozes
E os destruiu.
O palhaço está morto
No meio do picadeiro
Que ele mesmo construiu.


O palhaço não ri mais...

Flávio Moreira
19-20NOV84

Transcendente

Existo
Em algum lugar
Em algum tempo
Em algum espaço

Existo
Em qualquer lugar
Em qualquer tempo
Em qualquer espaço

Existo
Em todo lugar
Em todo tempo
Em todo espaço

Existo
Em nenhum lugar
Em nenhum tempo
Em nenhum espaço

Existo
E não importa
o lugar
o tempo
o espaço


Flávio Moreira
28DEZ83

Sem título

Quero deixar o tempo
Atravessar meu corpo
Para que eu me torne tão eterno
Quanto o haver estrelas

JAN 1986

Letargia

Durante o sonho
Desperto.
Em meio à realidade
Adormeço
Entre o sonho e a realidade
Existo

06JAN86

Memo

A lua
Leva,
Longe,
A lembrança
De liberdade.

19-20NOV84

Determinismo

A fatalidade da vida
É a fatalidade da vida;
E contra ela, nem eu
Nem você, nada
Podemos fazer.

19-20NOV84

Sem título

És segredo.
Guardo-te.
Só te revelearei
Quando me amares.
Guardo-te.
És segredo.
No fundo do coração.

30SET86

O Viajante


Quando se abrem as estradas,
Quando se ampliam os horizontes,
No espaço entre o nascer e o morrer, viajo.
Sou aquele que vaga, migra, navega;
Sou o que divaga.
Divagar...
É brincar com palavras sérias.
A maior distância no meu pensamento
É um ponto: o da partida.
Chegar e partir.
Reencontrar quando possível.
Quando canso da jornada, paro e penso.
Penso no vazio das prisões humanas
Estão sempre cheias de escravos do tempo.
Não tenho tempo, nem memória!
Tempo é uma medida humana, prende;
A memória escraviza-nos ao passado.
Quero, tão somente, viajar.
Viajar o imenso mundo.
O universo é tão pequeno.
Se chego, já é hora de partir, que pena!
Pena para quem fica.
Não posso criar laços.
As pessoas crêem em sensibilidade e sentimento
E, depois, se perdem.
Sou o viajante;
Amos todos em todo lugar
E não amo ninguém.
Apenas viajo.
Porque viajar é estar
O mais próximo possível
De lugar nenhum.
Porque viajar é estar
O mais próximo possível
De mim mesmo.

Flávio Moreira
26/10/1986
14h24
Desenho: Flávio Moreira - 03/02/1983

Preâmbulo quase dramático de uma noite de insônia

Me sinto vazio como de outras vezes, quando ando perdido pela cidade. A noite fervilha em cores, corpos, copos, cortes...
Tenho a profundidade das ravinas no coração; um coração apertado, um suave ou silencioso desespero. A noção que eu tinha dos rituais perdeu-se no desfoco orgânico do cristalino, agora mofado como a música de Cat Stevens, depois Beatles, que se arrasta no rádio, em meio ao ruído das colheres nas xícaras e as vozes no café de esquina; entre o "michê-point" e os carros de luxo.
Tenho parágrafos perdidos nas alamedas da mente. "Nothing is real". E eu tão pedante tentando desacreditar da minha auto-piedade. Querendo ser indulgente comigo, como a formiga e a cigarra. Só então me dou conta de que já fui mais corrosivo em outras épocas, antes do brilho mágico e cortante das palavras ter se apagado e o aço-ácido das idéias ter sido subitamente neutralizado pela cinematográfica sucessão de imagens que eu sei que entendo, mas dissimulo, me escondendo atrás da parede imaculadamente branca da alienação.
Vejo criaturas noctívagas entregues ao ventos das circunstâncias enquanto as observo, sem enxergá-las, assim um pouco encolhido no meu canto, refugiado em um resto de chá com limão quase gelado.
Sinto saudades do tempo em que tinha emoções e, através delas, me permitia escrever. Hoje tenho fiapos de emoção que não movimentariam o mais sensível dos sismógrafos, e as palavras são apenas fragmentos de algo maior, a muito perdido, esquecido, oculto.
Isto não é uma "bad trip", como se diz no jargão modernoso da geração inerte deste tempo de sombras. E não pretendo entrar numa: já viajo o suficiente na toxidez do dia a dia. Quero não ficar amargo, nem triste. Quero estar calmo e tentar alguma paz enquanto acredito ter consciência de estar vivo, sob o sol escaldante do princípio do inverno, às quase duas da manhã.
A madrugada é fria, mas quero não ceder à tentação do olhar que me busca - que busco - sabendo mesmo que estancarei à margem de qualquer tentativa de resistência. Mas não estou em condições de me apaixonar. Entretanto tenho algo insistentemente humano, carnal, que me faz oscilar entre o existir e o não-ser, sorvendo o último gole do meu chá com limão e sentindo uma dor incômoda descer pelo peito, meio angústia, meio desespero, percebendo o abismo crescer por dentro.
Mudo de lugares: do café ao bar como um vampiro. Caio no jogo vadio das coincidências e volto ao passado, me surpreendendo ao ver que as emoções emboloradas não apodreceram por completo com o passar do tempo. Nem tão pouco maturaram: estão congeladas numa tessitura qualquer de tempo, emergindo adimensionais e repentinas, porém sem susto. Fito, e o que vejo não sei dizer se é a ternura envelhecida de outros tempos ou apenas uma projeção pálida da minha total apatia emocional. Ignoro tudo e aguardo, extático, o surgimento de alguma coisa nova numa madrugada qualquer de maio.

Flávio Moreira
sem data (maio 88, talvez)

Poema da Angústia

Tenho sonhos cinzentos durante a noite:
Paisagens urbanas sobre as quais me espalho,
Carregadas da ausência de chuvas – emoções férteis.
Não sinto minha quase erudição, exaurida na inexpressividade das idéias.
Descoordenado, penso palavras que não escrevo,
Sensações dispersas que não possuo.
Não sinto a ternura dos olhos, o calor das mãos
Por mais que me toquem e olhem e sintam...
Desabituado das palavras, me torturo, sem qualquer vestígio de dor.
Entorpecido o corpo, não percebo a fuga da inspiração,
O abandonar-se do espírito.
Desligado do mundo, ergo-me aos cumes inacessíveis
E desabo em abismos intermináveis.
Descoordenado, caminho com mãos nos lugar de pés
Sob o escaldante sol do deserto-vida,
Onde arrasto-me às avessas nas sarjetas da insensibilidade.
Insípido, me diluo em todas as bebidas, trafego todas as veias,
Libero todos os medos, toco todos os sexos, beijo todas as bocas,
Sem qualquer ânsia de viver.
Destilado, evaporo na atmosfera cheia de todos os odores mundanos
— Sensualidades devassas e drogadas amontoadas em cantos de banheiros públicos —
Traço solto em outdoor esquecido, sou esboço de meu próprio ser.
Envelhecido, encarquilhado, deixo o tronco retorcido do que sou à beira da estrada;
E cada um que passa arranca uma lasca da árvore morta.
Doente, diluído, retorcido, encarquilhado, envelhecido, morto...

O poema incompleto da desesperança é o ser urbano completo no momento do suicídio.

Flávio Moreira
04/11/1988

Noturno (inversão)

Ao entardecer, vivi todos os tormentos, presságios, agouros...
Ilusões formadas no seio da noite tomaram de assalto minha mente.
Na proximidade do ocaso, fui passageiro em suas asas:
Vi todas as luzes da cidade, constantes ou não.
E dentro delas os homens, as mulheres, a humanidade inteira...
Deslizei displicente em todas as camas e recantos brumosos
Onde mãos exploravam corpos e segredos eram revelados.
A cada instante novo brilho surgia e com ele nova realidade;
E eu alheio a toda realidade...
Até o ápice da lua, horas intermináveis de devaneios.
Entorpecido com tantas imagens, adormeci.
Tive todos os sonhos, bons ou maus, providos pelo cansaço;
Pesado, afundei o corpo na realidade inverossímil do meu catre,
E deixei vagar o espírito por entre mundos inimagináveis.
E todas as viagens que fiz,
E todos os lugares que conheci,
E todas as coisas que palavras não descrevem —
Maravilhosa ilusão do viver!
Aninhado, coberto, aquecido, saciado, despertei.
Então o desmoronar das ilusões me foi menos doloroso.
Ao amanhecer, permiti a limpeza da matéria:
Lavei a essência, perfumei a alma, purifiquei o corpo
E me ofereci inteiro às primeiras cores da manhã.
Acariciado pelo vento, sedento de orvalho, inebriado pelos odores da aurora,
Fui exposto à toda exuberância da natureza.
Arrepiei a pele aos primeiros raios de sol, antevendo a eclosão do gozo.
E me expandi, matéria e essência, por todo o Universo...
Assim, existindo desnudo, imemorial e mutante,
Sou reflexo cristalino da ansiedade do mundo
E, por isso, o assombro.

Flávio Moreira
09/11/1988

Alma Peregrina

Cai a tarde. Quente, abafada, úmida. Uma alma não mais tão jovem, por isso cansada, aguarda a chegada do reconfortante sono. Velada pelo esgotamento de mais um dia de lavores, ela agoniza no leito, com os olhos em chamas, quase clamando por algumas horas de merecido repouso. Entretanto o apelo incontido de suas pulsações internas não a deixa dormir.: todas as emoções desvairadas ebulem em seu coração e alteram o ritmo do universo ao redor. Prostrada, porém ainda lúcida, ela se deixa conduzir, combalida pelo fluxo intenso e flamejante das palavras que, por instantes, não lhe têm qualquer significado, a não serem traços vincados no papel. Da mesma forma, a agilidade descoordenada das mãos evoca um mar em fúria que não consegue manter a regularidade das ondas, mas que desenha harmonias na areia da praia. As palavras correm incontidas, inestancáveis como o sangue efusivo de uma jugular cortada. Há dentro desta alma delirante o sismo gigantesco das emoções profundas, onde grafismos e horas não se contam, apenas alfabetos se ordenam em idéias obscuras, e o tempo desenrola-se segundo seus próprios princípios. Não há compreensão integral de seu significado. A mesma sede que sentimos em conhecê-la mistura-se ao asco de beber em águas turvas a cristalinidade da criatura viva. Animal acuado em contínuo movimento na agonia da jaula. Fera esperando o olhar doce e seguro que a atravessaria com tranqüilidade e compreensão: uma face. Palhaço mil vezes rido e aplaudido nos picadeiros do mundo: outra face. Estrela pagã, indiferente a todos a quem impõe seu brilho. Ouro volatilizado, espargido sobre cabeças vazias, donas de peitos de pedra e corações de vidro. Sabem que não podem tocar seu corpo que guarda, no cerne, o fogo sagrado de sua própria vida, que partilhará com aqueles que, como ela, conhecem a noite e o deserto que carregam em si, mas que forjam no frio vazio de seu interior a pureza das cores derramadas nas galáxias da existência. Ela é uma alma peregrina, que caminha todos os dias o mesmo trajeto, por onde a paisagem nunca é a mesma. Sua caminhada sobre a insensatez a traz mais para perto do mundo, pois ela toca, acaricia, beija e apedreja e cospe em todos; e todos a tocam, acariciam, beijam apedrejam e cospem nela. Para todos ela é milhares e única. Para ela todos são o espelho onde ela vê o belo e o mal de si mesma. A eles é feito o convite para tocar seu corpo e é lançado o desafio e fazer com que ela aquiesça um carinho. Ela adormecerá, enfim saciada de tanta vivência, pois a poesia do dragão a liberta, e a liberdade expõe a ternura sob suas garras. Num momento que anuncia o alívio ela se transforma: seu frágil corpo cresce e avoluma-se e seu olhar é quente, brilhante e harmonizador. Tudo nela é um afago febril. A febre das palavras, que amaina com a chegada do deus-sono, e que cessa quando suas asas se fecham para que ela se refaça e suas energias sejam purificadas, para que amanhã ela ressurja das cinzas adormecidas. Para que seja ela o guia do carro do sol ao amanhecer...

Flávio Moreira
22NOV88
23:00h

Dissolução

Ansiava uma palavra. Lia poemas, há pouco. Quis falar e calei. Agora, tentativa de palavras (minha comunicação verbal ressente-se da falta de aprimoramento). Experimento o cigarro, na falta do meu cachimbo: sinto-me nauseado com o odor desagradável e o gosto amargo, mas insisto. Neste instante retiro-me do meu corpo e me observo nesta cena: sentado à soleira da porta, com o cigarro na mão; a noite é fria e estrelada. Tenho o olhar vago, os pés descalços. Sopro os pensamentos com a fumaça... Caligrafia arrastada, emaranhada. Não importa, não quero estéticas físicas perfeitas agora. Estou cansado. E triste. E também me dói a cabeça. Estou velho... Sinto-me caindo aos poucos, à beira da estrada. Estou perdendo o romantismo. Quero solidificar a calcariedade do meu coração. Quero pedra pesando no peito, até que mais nada eu perceba dentro de mim, a não ser uma massa sólida, úmida, maciça. Mas sou tolo e sei que não posso, pois decidi sentir tudo intensa e irracionalmente; e sei que devo assumir todas as responsabilidades decorrentes da decisão de sentir. Ainda assim vou continuar tentando anular essa capacidade até ser completamente vencido pelas possibilidades do sentir: profunda e intensamente, como aquele que se atira ao abismo pelo deleite fugaz da queda e o prazer efêmero do choque, sem grito; ou sentir muito e longamente, como o viajante sem rumo, percorrendo rios, mares, céus, espaços, vales planícies e montanhas, em um nomadismo infindável por portos sempre provisórios. Mas eis que me encontro romântico de novo, embriagado com palavras que arrastam emoções pastosas em cusparadas longas, tisicamente febris. Definho aos poucos na soleira da porta e me deixo enganar pela ilusão de minha própria imagem de cavaleiro em armadura luzidia que empunha espada flamejante: ele/eu estende sua mão salvadora e terna e eu/ele antecipo num menear de cabeça o prazer do afago. Mas eis que se evapora a imagem: minha realidade não me fornece carícias para hoje. A noite é fria e longa e a dor aguda nos flancos da mente me recorda a banal necessidade de repouso. Mas o que é o descanso? Fechar os olhos e esquecer a existência, talvez... Não haverá descanso para mim, nem esta noite, nem nas que virão. Nem mesmo na morte, pois ainda há que se sentir dores, trilhar caminhos, retirar véus... Muito ainda hei de vagar, por existências longas e tardias (tantas estradas, tantas escolhas). Então, perto do fim, caminharei até tombar, completamente existido, à margem de um lago de vivências. Ali, debruçado, revolverei com a ponta dos dedos a lama dos sentidos, sem quaisquer emoções bruscas. Sei o lodo da pedra por que o sentirei cobrindo meu corpo, que pouco a pouco ficará inerte, entregue ao orvalho da relva. Esta é a única e última sensação que possuirei, até que o musgo cobrirá minha boca, calando-me para sempre, e meus olhos escorrerão nenúfares na superfície da água. Assim, no lugar onde um dia existiu meu corpo, haverá apenas musgo, pedra e relva. E não haverá qualquer memória do que fui que permaneça, porque terei me dissolvido na poeira do tempo.

Flávio Moreira
15MAI89
21:30h

Feliz Ano Novo

Não é depois do chope que me sinto mal. Afinal, o resíduo deste duvidoso prazer é apenas um líquido amarelado, semi-viscoso e quente, carregado de sais e impurezas que, quando expelido, leva consigo todos os nossos humores e angústias, levados por esse caminho comum por onde passam todos os detalhes indefectíveis de uma existência miserável: o esgoto. É esse ponto final que torna a todos nós iguais e é essa igualdade que faz com que eu não me sinta mal depois do chope. É antes dele que vem a tristeza, o mal estar, a garganta seca, a vertigem e o gosto amargo na boca. Antes do chope é estar sozinho e triste. Depois do chope é estar sozinho, triste e eufórico, o que, no fundo, não alivia nada.

Flávio Moreira
08DEZ90

Fênix sem Chamas

O pássaro acredita na possibilidade do vôo
Até a queda.
Para o pássaro nada existe a não ser a felicidade do vôo
Até o momento da queda
Tudo depois dele é desconhecido, atraente, temido
Todo desconhecido é, para o pássaro, inexplorável
Pois está além da queda
Entretanto ele sabe, o pássaro, do inexorável na queda
Ele é consciente do inadiável
O objetivo do pássaro é a queda – a barreira a ser vencida
Atravessar a barreira é mergulhar na queda
— A queda como recurso único de libertação —
Então atravessar a barreira é apenas parte do objetivo
O tiro – que provoca a queda – é o anjo da anunciação
E o pássaro cai rumo ao seu destino: a morte
O objetivo é vencer a morte do único modo possível:
Morrendo
Morrer é descobrir que as barreiras não cessam – nunca

Flávio Moreira
08/11/1990

Texto 1

Tempo nublado nos meus olhos que ardem, mar desertificado na ausência de consangüinidade com os dias. Fui exaurido na busca eterna de coisas místicas, confundindo mitos e lendas com a realidade, muitas vezes insuportável, dos meus ainda poucos anos vividos. Exaspera-me não ter como mensurar exatamente em que ponto da vida estou: sou jovem ainda para ter alcançado imaterialidades tais como sabedoria e calma diante da vida (penso: "é preciso ter sofrido muito e sobrevivido a tudo com um mínimo de sanidade"); entretanto já sou muito velho para outros comportamentos pouco condizentes com a minha condição de jovem já envelhecendo. Desespero-me diante das dificuldades mínimas da vida e dos meus medos adolescentes subitamente renascidos. À medida que envelheço descubro meus distúrbios da puberdade e pondero se realmente deixamos de ser adolescentes diante do dia a dia e das experiências. Sinto-me antigo como um grão de areia agregado à rocha; como a primeira partícula de poeira surgida no Big Bang. Minhas idéias andam em sentido oposto ao do meu corpo. Sou um guardador de tesouros antigos, que já não interessam mais a ninguém. Não há mais quem queira saber o que há guardado entre as milenares juntas doloridas de meus ossos. Por isso me sufoco na poeira secular dos meus alfarrábios, todos escritos no antigo idioma da afetividade humana, quando não existiam as variantes distorcidas por religiosidades torpes, belicosidades sócio-políticas ou excrescências filosóficas mal digeridas no passar dos séculos. Era tudo simples no instante em que vejo, em meio a essa atmosfera Pessoana, sentindo ânsia pela vida como se fosse morrer neste próximo segundo. Desoriento-me. Não há bússolas, astrolábios, mapas, nada que me guie. Não tenho norte porque desaprendi a ler estrelas e meu eremitério é, hoje, fraca fortaleza urbana, de onde não consigo mais vislumbrar o conhecimento, a não ser para mascateá-lo em nome da sobrevivência. Tenho uma tristeza cansada, que não é infelicidade, de quem tenta ser feliz todos os dias com otimismo, mas que acaba sendo vencido pelo rosto marcado no espelho ao fim do dia, e que se contenta com o calor do próprio corpo repetido no colchão. Tempo nublado nos meus olhos que ardem, não por chorar, pois desaprendi a arte do extravasamento das emoções. É meu corpo que paga pelas agruras do dia a dia e pelo meu revoltante silêncio. Meus olhos ardem porque já não podem mais contemplar o mundo em sua plenitude; por não mais olhar no olhar do outro, pois ambos não nos permitimos, animais acuados diante do desejo de serem plenos, mas com medo. Então me pergunto se ainda poderei transformar este desejo em energia prometéica que nos conduza novamente ao Avalon de nossa plenitude.

Flávio Moreira
12AGO92

27 de abr. de 2009

Texto 2

Sabe, pai, quando eu era criança vivia sem você, sem me dar por isso. Meu universo limitado e rico da infância oferecia todos os subsídios para ser feliz, sem me preocupar com sua ausência. Só hoje percebo o quanto dói não te ter tido. E, se falo assim de você, não é do ser que contribuiu com o diferenciador genético de sexo: falo de você, o ser humano que nunca existiu na minha vida; a outra metade da maçã; o ombro, o peito, o braço, o abraço que eu nunca senti; o castelo que nunca foi a fortaleza que eu sou, porque me falta esse alicerce do homem. Tenho mãe, que é um amor lindo e louco e maior que tudo e que transborda sempre, sem nunca ser demais, mesmo quando parece ser. E tenho avó: o amor descompromissado e sereno, como deve ser o amor dos anciãos: avó tranqüila e altiva, mesmo curvada nos seus mais de noventa anos de doce sabedoria. Elas me deram a afetividade e o desprendimento no ato de amar. Mas eu não tive a sua medida. Não conheci os limites e desembestei a sofrer, pois eu sentia mais do que devia. Transbordava, exauria, extenuava. Então, para não sofrer tanto, comecei a racionalizar todos os minutos da minha vida. Pretendi ser artista: pintor, desenhista, escritor, filósofo, alquimista, avatar... Tudo simulacros. De novo faltou a noção do limite, o saber ser grama pisada mil vezes por pés de gado. Estou agora essa coisa meio sem forma, sem gosto, sem cor. Não sou, não estou. Tinta velha descascando da parede; teia de aranha no canto do quarto fechado há anos; ferrugem comendo o portão caído na casa abandonada; esqueleto de folha devorada na terra: tudo instantâneos de mim. Filme projetado na minha cabeça, cada fotograma é uma imagem do que realmente sou, para me provar não ser único; para me mostrar perecível, composto orgânico supostamente pensante. Adubo. Conjunto de reações bioquímicas que dão forma à flor e nenhuma à lama. Transitoriedade. E o mundo não é o que eu penso, porque já me esquivo do pensamento. Meus olhos ardem, pai, e eu não tenho nada de meu que não a dor, o cansaço, a tristeza, e o meu permanente sorriso matinal para os dias que vêm. Já não tenho medo de qualquer coisa, só da morte, por ser o contrário de estar vivo. Por me lembrar uma agonia e uma dor maiores do que se pode suportar. E eu suporto mal a dor, pai. Mas não choro, e meus olhos ardem. Então faço chover ficticiamente, para que eu possa dormir eternamente envolto em cobertores.

Flávio Moreira
12AGO92

Reencontros

"O tempo: esta substância da qual somos feitos."
J.L. Borges


Escorre um fio de tempo morno sobre as ondulações do ventre quando eu, aqui deitado e coberto com o escuro do quarto, remeto-me aos idos anos dos primeiros encontros. Tenho a febre alucinante escaldando meu corpo, frêmito gozo prazeiroso de ver de novo, em um novo momento, repetidos momentos incertos, imprecisos nesta minha memória devaneante, sempre viajada de emoções indistintas, embora imiscíveis. Transpiro, respirando cansado e sôfrego, como quem fez amor ininterruptas horas e extenua-se sobre a nudez do corpo que lhe veste este momento. E é esse corpo de recordações novas em novas situações que me fazem delirar, num desejo incontido de exacerbar o momento único do gôzo de estar vivo e feliz, para que toda a ordem universal se refaça a partir do princípio divino do indizível amor que brota desde a minha alma inteira; atravessando a minha pele, a tua pele, a pele do outro; penetrando sempre e fundo a tua alma, a alma do outro, a alma-pele do mundo, de tudo aquilo que existe antes e depois do clímax do gôzo de Deus feito nosso gôzo no instante em que nos vemos. Sorvo, ávido, o inebriante olor do corpo suado do êxtase eterno de saber ser imortal esta ternura imensa que nos une. Meu corpo é uma primavera de acontecimentos e meu quarto não é mais um quarto, mas o imaterial espaço onde tudo nasce, cresce e a tudo fecunda. O sêmen de Deus banha minha vida e abre as portas de todas as sensações, as belas e as más, que podemos viver no período de uma eternidade, transformando sempre as coisas desde o início, no ciclo-cio dor-prazer-torpor-crescer-dor-nascer-viver-morrer-dor-prazer-torpor (ad infinitum). Infinitamente porque cada vez é a mesma, mas diferente. Cada vez é sempre, porém única. Me desvencilho da malha convencional do tempo, este mesmo tempo morno que escorre sensual sobre meu ventre molhado de prazer divino, quando eu, deitado no meu quarto, estou nú diante da vida que tenho e que quero, agora, partilhar contigo neste ápice do novo reencontro, que repetiremos sempre e sempre, porque assim nos cabe; e assim propagaremos toda a energia pulsando dentro de nós, para que tudo se destrua e se refaça no incêndio maravilhoso do momento em que nos amamos inteiros e verdadeiros. Resgatamos e devolvemos à vida todas as emoções colhidas nos milênios de vivências. Neste instante em que nos vemos-amamos, eu te entrego meu coração, que já não bate mais no meu peito porque já não cabe nele o amor que sinto.

Flávio Moreira
14OUT92
17:25h

Sismos

Eu deveria começar este texto falando de alguma coisa, qualquer coisa, só para saber até onde conseguiria chegar andando neste vazio de idéias que agora me ocorre. Gostaria de poder expressar através de um meio de comunicação inteligível o que de mais profundo e sísmico acontece no meu interior. Se falo interior, sem determinar exatamente que ponto difuso é este dentro do meu corpo, falo justamente por não saber se o que sinto vem do coração, do cérebro, da alma ou de qualquer outro lugar que possa gerar em um ser humano a avalanche de sensações e emoções que percebo em mim. E, também, se digo sísmico, o digo porque sinto que todo esse volume de sentimento surge de forma avassaladora, como se a terra novamente revolvesse suas entranhas, para acomodar-se dentro de suas transformações geológicas. Sinto-me como a terra: movimentação imprecisa das placas tectônicas do meu íntimo, que fazem com que todo conjunto do que sou novamente se transforme e se acomode dentro de todas as perspectivas que surgem destas transformações. Como a terra, o que sou não julga maniqueistamente essas modificações. Sinto-as, apenas. Não há, dentro delas, qualquer coisa que possa ser qualificada como boa ou ruim. São nuances, variações de um mesmo tema: o ser que sou e que se forma e que caminha, ainda que vacilante, em direção ao conhecimento de si mesmo. Pode parecer simplório ou piegas dito deste jeito, mas acho que esta maneira simples de dizê-lo é a mais verdadeira, porque não necessita de fantasias filosóficas ou sutilezas literatas-acadêmicas para existir. Dispo-me das fantasias para alcançar o mais interno em mim. Então me abro para tudo o que está aqui dentro e que eu ainda não sei o que é, nem de onde vem (creio não ser importante saber o que não é essencial). Por ignorância tenho a sede desesperada de entender tudo através da racionalidade das palavras, onde busco recursos semânticos que considere suficientes para exprimir tudo. Mas o tudo que sinto se mostra cada vez menos traduzível. Fôra eu um contador de estórias e talvez pudesse inventar fábulas que descrevessem tudo. Mas eu estaria vestindo fantasias para explicar o que já não carece de ser explicado, porque se deve apenas sentir. Perdoa-me se misturo as idéias, que me fluem de maneira pouco ordenada. É que é tanto o que eu queria dizer e tão limitada a minha capacidade de fazê-lo que eu não vejo outra alternativa: neste momento me abro para que você leia em mim o que sinto. E o que sinto está dentro do que sou e o que sou está dentro deste corpo. Assim, para você me conhecer, me desvencilho do medo de me dar e me ofereço inteiro a você. Porque já não posso mais ser pedaço, dou ao mundo o que sou.

Flávio Moreira
28OUT92
21:50h

Negações

O mundo não é mais o mundo que eu conheci. O nada essencial deixou de existir. Vivemos tudo e não conseguimos entender o volume que esse tudo representa. Sufocamos. Corremos o risco de morrer de overdose: de informação, de angústia, de abandono, de desolação, de incompreensão, de desamor, de amor, de tesão, de vontade, de emoção, de racionalidade. É como se tivessem apertado o botão de avanço rápido da nossa vida e não tivéssemos mais tempo para viver. Passamos, e rapidamente, pela nossa história, que toca de leve a história de outros. Movem-se as coisas mais rápido do que podemos acompanhar. Nosso arquivo de subliminaridades pode não suportar tanto. Não vemos, não sentimos, não falamos, não tocamos, não amamos, não odiamos, não fazemos nada com tempo suficiente para compreendermos nossa própria transitoriedade dentro dos acontecimentos. Fomos atirados no vórtex do inexorável em nossas vidas, sem ter tempo para amar e viver o amor, para que ele nos dê prazer; sem tempo de odiar e entender as motivações do ódio. Não questionamos. Mergulhamos em vinte horas de trabalho diárias, nas mais diversas atividades, porque não podemos nos dar tempo para pensar nosso papel na vida do outro, já que não tomamos conhecimento do que é a nossa própria vida. Não pensamos; não verbalizamos. Gaguejamos. esquecemos as palavras que mais usávamos no tempo dos diálogos, quando, além de palavras, trocávamos vivências, emoções, idéias, vida. Ficamos parvos diante do grandioso que criamos e não entendemos a utilidade do que foi criado. Perdemos a capacidade de expressar até mesmo as nossas mais simples idéias, nossos mais perfeitos sentimentos. Nos envergonhamos das declarações despudoradamente limpas das nossas emoções mais básicas. Estou cansado de deuses. Sempre inatingíveis, impassíveis, megalômanos, voltados única e exclusivamente para sua própria ilusão de felicidade narcisa. Não peço nada a ninguém, porque estou tão mergulhado nisso quanto qualquer um. E sei que à minha revolta, quase pueril, não será dada qualquer importância, nem mesmo a mínima que ela mereça. Não há do que nos envergonharmos. Afinal de contas somos todos muito sujos mesmo, num momento ou outro de nossas vidas (quando não, em todos os momentos dela). Sei que estou sendo excessivamente sentimental, primário, básico mesmo. Mas é que emoção intelectualizada é foda de suportar, meu caro. E eu já estou muito machucado para ter que ficar me justificando a toda hora pelas minhas crises de humanidade. Só queria poder te tocar um pouco, sentir o calor da pele do teu rosto, assim, sem nenhuma intenção que não a do carinho por si mesmo. Mas tudo tem um preço, não é? E quem não quiser pagar está fora do jogo, é certo. Mas não ligue para o que eu falo. Não é por maldade, nem por raiva de ninguém. Não guardo rancor das gentes. Eu só queria poder estar assim próximo, como no tempo dos diálogos, trocando essa emoção, esse carinho que não está pedindo nada em troca, a não ser um pouco do que ele mesmo é. Não ligue para a minha tristeza. Ela passa, como todas as coisas. Isso tudo só aconteceu porque alguém esbarrou por acidente no botão de 'pause" e eu não pude continuar correndo sempre no mesmo lugar. Mas a roda-viva não pára e eu já estou indo de novo no fluxo veloz de todas as coisas. Talvez você esqueça de tudo isso no próximo segundo, quando entrar também na roda-viva. Não se preocupe: eu só espero ainda ter tempo de plantar uma flor no jardim da minha casa antes de tudo rodar de novo.

Flávio Moreira
17/05/93
19:30

O Mal, o Belo e o Poder

Não é o mal em mim o que mais me desgasta e trucida. É o amargo do viver cada dia lutando contra monstros quixotescos que me põe cada vez mais longe da tranqüilidade de que preciso. Extenuo, a mim e a outrem. Tenho raiva de não poder ser campesino, placidamente observando campos verdes e não tendo por contendores mais do que as intempéries da grande Mãe. Quero os ritos simples de culto à harmonia, ao belo, ao natural, ao divino em cada um de nós, caminhantes cegos, perdidos, humanas máquinas desorientadas. Não há um caminho único. Não há certezas absolutas (hoje sei que nem mesmo a da morte). Não há verdades perfeitas (o que pode ser tomado como exemplo do perfeito?). Sei do mal da humanidade, que é o meu próprio, mas também sei do seu belo. Creio na doçura possível atrás de cada punhalada diária. Entendo minha limitação de não ser limitado e de poder escolher, e de poder escolher errado ou certo, sem estar muito seguro do que cabe nestes conceitos. Posso amar, ou não; posso ser amado sem poder proibir que os outros me amem, mas posso não me permitir receber o amor. Posso muitas coisas e isto, acredite, é mais limitante do que estar preso entre quatro paredes. Porque posso ser livre entre quatro paredes enquanto for possível enxergar, ouvir, sentir cheiros e gostos, enquanto for possível pensar. Enquanto puder . . . e o poder tantas coisas assusta, corrompe, emburrece. E isto é sábio, porque é possível. Porque eu existo na sua imaginação; porque você me vê, me ouve e, quando eu permito, até me toca. E você está presente na minha imaginação, porque eu, em minha egoísta e pretensiosa omnisciência, deixo que você exista ali. Mas tudo é só uma face, uma nuance de cor, uma variação de padrão. Enquanto eu falo pelo meu pensamento você está fazendo outras coisas, falando outras palavras, pensando outras idéias e enlouquecendo tanto quanto eu, mas do seu jeito. Você está amando, se deixando ou não ser amado, vendo, sentindo cheiros e gostos, ouvindo, tocando. Só que do seu jeito. Em todas estas ações você é igual a mim e, por esta semelhança, eu te amo. Em todas estas ações você é diferente de mim e, por esta diferença, eu te amo. E eu também acredito que estou, neste momento, tocando em você, porque você me toca e eu sinto o mal e o belo de você em mim. E você sente o mal e o belo de mim em você. Então não é o mal em mim que me desgasta e trucida: é o não sentirmos o belo em nós mutuamente e a todo instante que me afasta da tranqüilidade que preciso. Para recuperar a lucidez . . . ou para perdê-la de vez.

Flávio Moreira
07/01/94
19:17h

Prelúdio e Fuga

"Mas eu nem sempre quero ser feliz
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para poder ser natural..."
(FP - Alberto Caeiro)

Talvez eu devesse estar alegre. Talvez. Não consigo ter certeza. É como se o mundo à minha volta fosse uma interrogação. Ando, como sempre, triste. É o meu jeito de ser eu mesmo. Vivo minha melancolia intensamente, como se esse fosse um jeito mais meu de ser feliz. Gostaria de poder dormir, mas existe sempre o mesmo diferente filme projetado diante dos meus olhos, estejam eles fechados ou abertos. É um filme sem histórias, sem enredo, roteiro, apenas a sucessão infinita de imagens, como comerciais curtos em velocidade rápida, "zappeadas" constantemente, saturando de forma subliminar meu raciocínio lógico. Por isso já não escrevo coerentemente: porque já não penso coerentemente. Meu pensamento é um olho de libélula voltado a todas as direções, uma metralhadora disparando contra os mosquitos gigantes que me assustam, zumbindo imagens passantes, filmes mínimos: avião passando, trem passando, carro passando, tempo passando, vida passando e eu atingindo a velocidade da luz. Minha massa entra em colapso sobre si mesma no horizonte de eventos, atingindo o orgasmo universal-primordial onde não sinto mais nada. Fico a adensar-me cada vez mais, fugindo do abismo pensando em qualquer lugar no momento relativo exato. Equação da vida enfim decifrada: a anti-vida. O morrer mil vezes ao infinito, perder-me vale, abismo, falésias e o mar dos sonhos batendo nas encostas da mente. O delírio triste e melancólico de minha doce alma arrebatada do corpo pela luz fria do luar, que é a luz quente do sol refletida na lua. Onde piso sozinho eternamente no chão do deserto que os homens chamam de mar... Tranqüilidade, ou algo assim. Algo que lembra paz absoluta, viver absoluto, morrer absoluto, um hibernar qualquer no colo de Deus. Esse pai que me lançou semente no ventre da terra-mãe, parideira de ancas largas e fartas tetas de loba. Nasci mirrado e seco como planta de caatinga, que já nasce morta e amarga. Mas amargura não era para mim. Era doce o que eu queria ser, porque era doce estar dentro da Deusa-Mãe, recebendo vida. Essa mesma vida que bebo hoje, tentando descobrir doçuras outras para embelezar minhas asas de anjo caído. Asas etéreas de anjo que deseja outros paraísos para existir em paz. Asas etéreas de anjo que deseja ser anjo etéreo, sem maldade, sem ser anjo dos homens. Anjo que ouve os trovões das tempestades solares. Anjo físico nuclear, astrofísico. Bestafísico. Anjo com delírio de gente, de humano triste, melancólico, bucólico. Delírio, que já foi deleite, mas que hoje só sonha. Grande Mãe, perdoa o filho lançado contra tua vontade em teu ventre, deleite de Deus. Vivo de consumir substâncias de estrelas mortas a milhões de anos. Minha vida, minha parca, mínima vida. Pequena e doce vida de menino triste, solitário, caminhante, delirante, adulada pela loucura. Porque só cresci assim por fora, corpo físico mesmo, amontoado de átomos, moléculas, células, órgãos, corpos, estrelas, galáxias... Um bicho de fome voraz. Fome de vida, fome de delicadeza em cada gesto, de suavidade em cada som, fome de gente viva. Um contador de histórias, mil e uma noites da mesma história de outros diferentes. Todos dançando a música dos sonhos de todos os compositores. Acordes únicos, ouvidos uma vez a cada nascimento do universo. E eu sou um ser que anda de ponta cabeça, para que meus pés pensem poder chegar onde meus olhos cegos o levam. Olhos da mente, que mente o que vê. E sonho o que penso, penso o que vejo e vejo meu delírio. Porque o delírio só existe se você estiver acordado: se estiver dormindo é sonho...


Flávio Moreira
25/01/94
1:50h

Sobre o último poema

Escrevi, hoje, meu primeiro texto após mais de um ano de total inatividade literária e o primeiro poema sete anos desde o último - "Noite de Inverno"- que, como este - "Declaração à posteridade" - trouxe-me o espanto de ter nascido pronto, de uma vez, sem alterações de conteúdo ou correções que não as gramaticais. É um texto pretensioso, quase arrogante, visto que olha para minha obra, se assim eu puder chamá-la, como se fosse vasta. Esta é a visão que se pode ter dele hoje, quando situado dentro da minha pequena produção. Por outro lado há um certo tom profético no seu conteúdo, pois busca evidenciar o trabalho completo de uma vida - "leiam-me póstumo, quando todo vivido" - onde supõe-se que o escritor (eu, no caso) continuou produzindo até alcançar a qualidade e o volume necessários a uma obra que possa assim ser chamada. Ou seja, resta-me a responsabilidade de persistir na lida pelo tempo que me resta para viver.

Assim, tomo este poema como ponto de partida para uma nova investida produtiva, cuidando para manter-me assíduo no labor das letras. Devo por de lado meu acanhamento retórico e, mais do que isso, minha incomensurável preguiça para o ato físico da escrita, para poder, através da prática, expor minhas visões de mundo, seja para pura apreciação estética, seja para avaliação crítica das idéias, pois que é desta troca que faz com o meio em que vive que o homem consegue os subsídios para sua evolução. Pego, como ilustração, a boa lembrança do dito de meu amigo do coração e excelente escritor Roger Trimer, que explica que a verbalização do pensamento torna-o mais fácil de ser avaliado e, consequentemente, situado dentro dos diversos contextos em que se exprime.

Resta, então, o desafio da continuidade e o compromisso pessoal com o exercício intenso deste desenvolvimento. É claro, faltam-me os estudos necessários, além da própria experiência, para a formação do estilo, para a apreciação das filigranas, das sutilezas e falta, também, adquirir o ferramental adequado ao burilamento das idéias, além do senso crítico e estético para a análise e compreensão do lido e do escrito. Pois o escritor/leitor bebe de várias fontes antes de encontrar seu próprio caminho e, mesmo encontrando-o, retorna a essas fontes como referência e elemento de comparação, como a bússola confirma ao experiente capitão sua leitura das estrelas.

Faz-se imperioso, neste instante, destacar a necessidade orgânica de transpor-me para o papel. Sei da necessidade de continuar neste caminho onde, se não encontrar a satisfação profissional, terei como alento o prazer de fazer algo que efetivamente afina-se com meu espírito. Hei de buscar os meios para tornar meu escrever mais prazeroso e rico, pois muitas são as possibilidades - conto, poema, romance, prosa poética.

Quero produzir, em qualidade e em quantidade, pois sinto que minhas energias internas me conduzem para este caminho. Ato contínuo, começo por esta pequena, pretensiosa e, por que não, eloqüente apresentação deste nada modesto poema, lançando luz sobre um momento importante do meu processo criativo, agora retornando de maneira mais consolidada e objetiva.

Fica também e principalmente, nesta apresentação, uma deliciosa ternura e gratidão ao carinho e incentivo de amigos maravilhosos; amigos desde sempre que, em diferentes momentos, apoiam e apostam na minha capacidade.

Flávio Moreira
18/02/9523:24h

Pequena oração capenga

Senhor,
Perdôa-me por minha pouca fé,
Por minha falta de carinho com meus amigos
E por minha falta de carinho comigo mesmo.
Obrigado por todas as coisas boas que me mostras
Em meio a todas as vicissitudes.
Obrigado pelas lições de cada pequeno
Acontecimento do dia a dia e que,
Tantas vezes, me passam despercebidos.
Obrigado pelo amor das pessoas que me trouxeram ao mundo;
Pelo amor das pessoas que me encontraram aqui;
Pelo amor das pessoas que eu encontrei aqui;
Pelo amor das pessoas que eu ainda encontrarei
E fazei com que, tanto quanto merecedor desse amor,
Eu possa amá-las tão honesta, profunda e sinceramente
Quanto elas me amam.
Obrigado, Senhor, pela grande vida que me deu e que,
Ingrato e injusto, às vezes penso tão pouca


Flávio Moreira
25/03/95
20:22h

Uma manhã

Amanheço.
Desperto dentro de outro dia
Sem qualquer memória do ontem
Seja tristeza ou alegria.
Ao tempo sucede o próprio tempo:
Crepúsculo, aurora, ocaso...
À minha mesa sentado, observo sua passagem:
Movimento lento de meu olhar vago.
Sou filho do acaso, fruto do momento.
Quando vago o tempo observa minha passagem:
Movimento árduo de meu corpo arcado.
Amanheço sem qualquer memória
Que não a do próprio tempo em mim marcado,
Notas ao pé da página de meu viver já antigo.
Tenho por companheiro o existir comigo
E junto a ele desperto no dia por ser vivido.
Ações, palavras, silêncios o irão compor
Para se decompor depois, sedimentando sonhos
Sementes lançadas ao acaso nos campos da mente...
Amanheço.
Desperto dentro de outro dia
Sem qualquer memória do hoje
Seja tristeza ou alegria

01/03/95
07:58

Ares dos dias

Não é um dia como outro qualquer
(Um dia nunca é como o outro)
Retornar ao mundo real e palpável
Após o arremessamento do corpo
No incorpóreo das alternativas vivências
Traz o atordoamento da mente
E o cansaço físico inevitável
É preciso tocar de leve nos fios que conduzem
De novo ao viver regularmente:
Uma voz amiga, um ambiente amistoso
Uma refeição cotidiana ainda que feita na rua
A caminhada pela vizinhança familiar
Sem estranhamento
O ir ao cinema e sentar-se calmo
Aguardando a projeção
Encontrar rostos conhecidos
Manter diálogos singelos
Os dias jamais são comuns
E este não é um dia como outro qualquer
Como eu não sou aquele que era
Ou sou o mesmo acrescido do contentamento natural
De apreender o dia de hoje e seus ensinamentos
Vivo da calma de estar respirando
Estátua aos poucos (re)aprendendo os sentidos
Lacunas, mergulhos, disparos e movimentos lentos
Corpo e mente desintegrando-se, re-integrando-se
Expansão e colapso sobre si mesmo
Sismo de vivências na sede dos dias
Bebidos ora com avidez, ora pausadamente
A degustar as horas
Vendo os dias aos poucos modificando-se
Em espetáculos ímpares que parecem os mesmos
(Descubro pequenas marcas em meu rosto)
Ah, que seja doce o despertar de hoje...

05/06/95
18:00

A quem interessar possa...

De meu mundo quis fazer um poema:
Faltaram-me as palavras
Ou faltou-me o mundo?
Oceanos represados no contexto da existência
Rompem caminhos buscando seu fluxo,
Remanso incerto a ser formado.
Mas as palavras, estas, indecisas, imprecisas,
Não lhe foram fiéis em sentido,
Nem lhe deram a dimensão do transbordo.
De meu mundo meu poema perfeito
Cria-se no laborioso do tempo a moldar-me.
Leiam-me póstumo, quando todo vivido,
E não mais traiçoeiras palavras lerão,
Apenas completo sentido.

18/02/95
20:47h

Fragmento

Quando me tocas sua mão de pluma
Sou dócil
Quando me pesa sua mão de ferro
Sou doce

Anotado em um pedaço de papel qualquer, sem data

26 de abr. de 2009

Amanhecendo


Acordo.
O relógio ainda não.
Esqueço a hora, me encolho.
Revolvo a mente, os sonhos
E sonho de novo
Entre os dez ou quinze minutos
Que me separam da realidade.
05/09/1984

Imagem: Henri Rivière

Ao Mar (Ode Mínima)

Ao mar o mundo dos vivos, que se dilui em veios exíguos de vidas egressas...
Voltar à época das imemorialidades e recontar os grãos da areia do tempo
Devolvendo ao mar as marcas e as lágrimas.
Que seja doce o reviver a vida, ainda que ela se desfaça em mares de existir.
Ao mar a angústia do que virá, pois não pertence à areia a onda por bater,
Apenas a espuma que borbulhou há pouco.
Não reste dor na memória que não recupere a alegria.
Eternamente vivam os amores na continuidade tátil do afeto.
Ao mar os ódios e os rancores, e todas as raivas e sentimentos amargos,
Para que seu ciclo infinito os transforme e devolva o contentamento da primavera
Esverdeada e florida sob as gotas de chuva.
Sábio o mar, fluxo e refluxo de emoções e almas...
Areias, encostas, rochedos, falésias - superação e conquista, conformação e apaziguamento.
Salgado o mar onde se diluem dores para que se façam doces as gotas de vida.
Afetuoso e intempestivo mar, canção e choro, fúria e riso...
Sublime e harmoniosa composição de vida revivida, encantada de silêncios e sussurros.
Ao mundo dos vivos o mar e suas vidas transformadas,
Ungidas no maravilhamento dos dias a recuperar o curso de seus veios

Flávio Moreira
12/05/95
13:00h

Ilustração: Henri Rivière - Aspects de La Nature

Noite de Inverno


Não há espelhos em meu quarto,
Apenas a alvura das geleiras.
Tenho as mãos úmidas e frias
- Inverno das sensações -
E o coração em estado letárgico
- Inverno das emoções -
No branco glacial das paredes que me cercam
Me inverto; me encolho, me encosto no canto
E escôo por entre o emaranhado de roupas que me cobrem
Me esquivo das gotas de tempo que me torturam,
À hora morta da noite invernal
Trago os lábios secos e quebradiços
- Inverno das palavras -
Assim como a pele perdeu seu viço e jaz,
Uma cobertura tosca, sobre minha alma
Já não tenho corpo e minhas mãos em garra
Abraçam inutilmente meus pés,
Tentando segurar o fio último de realidade
Flutuo no espaço vazio da minha ausência de afeto
- Inverno das relações -
Estou a estrela distante morta de saudade
Azulada, minha matéria explode
Me concentro energia dispersa
- Inverno do Universo -
Todo universo do caos do espaço em que me incluo
Todo caos do universo incluso em mim
Perco minha alma no mar da eternidade
Pelas paredes brancas, imaculadas,
Sequer uma gota de sangue
Estou indelevelmente impresso na inexistência
- Inverno da realidade -

- Na perdida retórica das estações meu espírito aguarda a primavera para florescer -

Flávio Moreira
14JUL88

Que haja sempre uma ponte transpondo obstáculos...


Foto: Pisgah Covered Bridge - Randolph County, NC, EUA