25 de abr. de 2009

Muitas dúvidas e nenhuma resposta.

Durante muito tempo me questionei sobre a necessidade que as pessoas têm de falar de si para um mundo totalmente desconhecido através desse universo fragmentado e fragmentário que é a internet.

Há pouco tempo, conversando com uma pessoa de onde trabalho, fiz um discurso sobre a minha percepção de que eu não tinha nada a dizer que valesse a pena ser publicado para tantas (ou talvez nenhuma) pessoas verem. Acho que continuo pensando assim. Mas aí dou de cara com um arquivo meio esquecido na pasta "Meus Documentos" que contém uma série de textos da época em que eu achava que tinha algo a dizer.

Não deixa de ser paradoxal que naquela época eu quisesse tanto me fazer "ouvir" e para isso acalentava o romântico sonho de publicar um livro (sim, aquele objeto retangular, de espessura variada - dependendo de quantas palavras alguém precisa para dizer o que quer - que normalmente enfeita várias estantes por aí; outras vezes, frequenta com ardor as mãos que os seguram como a um tesouro para que olhos sequiosos de seu conteúdo o absorvam por inteiro). E hoje, ou até hoje, pensava que realmente era tudo uma bobagem.

O sonho foi esquecido, a chamada "maturidade" chegou e com ela os juízos de valor, a recuperação (ou ganho de fato) da estatura real que possuo, como pessoa e como ex-projeto de escritor. Por isso, tendo o privilégio e a tristeza de ver nascer o século 21 com todas as suas prodigiosidades tecnológicas que podem me colocar diante dos olhos de um adoslescente indiano ou de uma senhora "antenada" do Zimbabwe, fiquei até agora em silêncio, usando essa máquina de escrever sofisticada apenas como uma máquina de escrever sofisticada.

Hoje, vendo minha pasta com velhos textos de um momento de ingenuidade e delírios de grandeza típicos da puberdade, dei um sorriso de canto de boca e pensei "por que não?". Eu já havia flertado com a idéia de um blogue desde o ano passado, quando criei este. Apenas o nome e depois deixei-o guardado na gaveta do esquecimento. Na hora em que a idéia marota de colocar os textos desse arquivo de velharias me veio, acabei encontrando este "Andarilho do Vento" começado, mas nunca começado de verdade. Quem sabe agora? Quem sabe nesse momento os pensamentos daquele jovem de 20 anos atrás possam, como uma estrela leva milhões de anos para chegar aqui, depois que a estrela em si já morreu, ter algum eco, alguma visibilidade? Mas saibam: aquele que escreveu essas coisas não existe mais. É outro. Menos espontâneo, menos caloroso, menos afetivo, menos arroubado, menos... jovem! Mas não menos verdadeiro.

Que o universo digitalizado e virtual os julgue.

Lasca de Tinta

A tinta amarelada, que um dia fora branca, estava soltando da parede, bem ali no canto, no vão entre a cama e a estante, onde estavam os livros eternamente iniciados, mas que jamais seriam lidos até o fim. Ficava ali olhando aquele vão da parede com a tinta descascando, contendo a muito custo a vontade de estender a mão até lá e puxar, para tentar tirar uma grande lasca sem quebrar muito. Era uma vontade dessas de criança mesmo, que fica sentada no canto, de castigo, inventando coisas para fazer naquele pequeno mundo de tortura solitária imposta por uma mãe um pouco menos compreensiva com a criança que entrou correndo estabanada pela sala e acabou derrubando aquele vaso com sua planta preferida. Mas não tocava na tinta. Afinal estava frio demais fora das cobertas para se colocar até mesmo um mindinho para fora. Estava só com a cabeça descoberta, porque senão sufocava. Não dava para dizer que expressão era aquela no rosto: estava distante, mas não poderia saber se estava triste ou alegre. Parecia mais aquela cara que a gente faz quando dormiu muito e que, quando acordou, ficou olhando para o nada, com preguiça de acordar. É, era uma cara de quem olha pro vazio saído do sono. Um sono sem sonhos. E já não lembrava mais os sonhos, nem os dormidos nem os acordados. Talvez se puxasse uma lasca daquela tinta pudesse lembrar alguma coisa, assim como que para tirar algo do tempo passado. Lembranças, às vezes, precisam ser tiradas à força da cabeça da gente, porque senão afundam num pântano qualquer da mente. Então ficava ali olhando aquele pedaço de tinta saindo da parede e querendo puxar, mas sem coragem. Dormitava enquanto pensava em não pensar. E quando abria os olhos via a tinta e pensava na lasca sem pensar nela, querendo puxá-la sem saber se devia. Então a mão foi se arrastando devagarinho para fora do cobertor. Estava frio, mas a mão continuou assim mesmo. Atravessou o espaço vazio entre a cama e a parede, pelo vão da estante dos livros semi-lidos ou não lidos e, quando ia tocar na lasca de tinta, viu se aproximar uma aranha, dessas que comem mosquitos e outros insetinhos menores. Por um instante, muito curto, a mão avançou e parou repentinamente. A aranha também parou, a alguma distância que ela considerava segura, daquela mão enorme, mais parecida com uma aranha sem pelos. Ela observava a mão parada a poucos centímetros dela, sem estar intimidada ou mesmo agressiva. Estudava aquela aranha enorme diante dela, com a calma dos predadores meticulosos, desses que saltam sobre suas vítimas quando elas menos esperam, sem oferecer-lhes qualquer possibilidade de desvencilhamento. Ficaram assim por longo tempo: a mão que ia em busca da memória parada naquele lapso espaço-temporal entre a cama e a parede e a estante, cega para a aranha que a observava de maneira estudada, quase curiosa, como se ponderasse se valeria a pena investir contra aquela criatura enorme à sua frente, senão para atacá-la, ao menos para saber como reagiria. Foi quando a mão começou a avançar, quase mais rápido do que ela poderia mesmo esperar, ou até do que ela mesma seria. Se armou toda, como quem ia dar o bote e sumiu num piscar de olhos por detrás da estante, enquanto a mão prosseguia o seu caminho até a parede, ali, na lasca de tinta, agora disposta mesmo a arrancá-la dali, para lembrar o medo que sentia de aranhas quando era criança, mesmo dessa pequenina que agora corria da mão assustadoramente grande que parecia ameaçadora, mas que a ignorava completamente. Puxou a lasca de tinta e atrás daquele pedaço de material sintético havia outro pedaço de uma cor antiga, mais antiga do que poderia imaginar. Havia grafismos esboçados naquele fragmento. Que não eram ordenados, é lógico. Eram formados pelos sulcos do cimento misturado com a areia que estavam secos atrás dele. Parecia a superfície brilhante da lua cheia vista com um telescópio de média potência. A luz do abajur iluminava aquele pedaço de universo onde agora caminhava com seus pés descalços, sentindo aquela granulação fria nos pontos reflexos na sola dos pés. De olhos fechados dava mesmo para ver a terra aqui embaixo. Dava até para sentar na borda de uma saliência qualquer e ficar olhando aquela bola azulada bonita lá embaixo. Apertando um pouco os olhos foi possível localizar a área do continente onde estava a sua casa. Se esforçando mais um pouco dava para ver mesmo a cidade, o bairro, a casa, o quarto e a figura deitada na cama, com a mão estendida para a parede, parando diante da aranha; avançando súbita e assustando o inseto; retirando a lasca de tinta, fechando os olhos, sentindo o frio rugoso da superfície na planta dos pés, a caminhada pelo solo lunar da lasca de tinta, as costas daquela figura sentada na beira da saliência observando o planeta azul lá embaixo, localizando o continente, a cidade, o bairro, a casa, o quarto, a cama, a mão, a aranha em fuga rápida, a lasca de tinta, a superfície lunar, as costas, os olhos, os sonhos...

Flávio Moreira
18/5/93
21:35
O texto acima é a versão original de "Flake of Paint", que abre este blogue. A idéia de traduzí-lo para o inglês veio por necessidade de apresentar um texto nessa língua para uma das aulas da faculdade.

Paradoxo


"Jamais encontrou nada de essencial nem em seus amores, nem em seu trabalho, nem em suas idéias. Ele é honesto demais para admitir que encontra o essencial no não-essencial, mas é fraco demais para não desejar secretamente o essencial."
(Milan Kundera - "Risiveis Amores")


Já havia algum tempo que ele caminhava naquilo que ele se acostumara a chamar "vazia vastidão incomensurável de..." Nunca conseguiu definir exatamente o que faltava naquilo tudo, por isso terminava sempre a definição em reticências. Era como se o interno e o externo fossem uma extensão um do outro e não havia meio dele saber o que era real nele mesmo ou no mundo que o rodeava. Na verdade ele não conseguia saber onde estava o limite entre o corpo físico dele e o corpo físico do espaço à sua volta. Nestes momentos em que ele mais alucinava do que pensava nesta conceituação, se via consumido pelos próprios pensamentos, como se não existisse nada além da própria idéia em si mesma do que ele era. Realmente não havia qualquer vazio a sua volta a não ser aquele que a idéia que ele tinha de si mesmo e do mundo o fazia acreditar existir. Ele não era uma pessoa mas uma interrogação ambulante que, tentando descobrir tudo o que havia ao seu redor não enxergava mais do que suas próprias dúvidas, que o alienavam de existir plenamente. Mas ele sabia que esse desvínculo com a suposta realidade era nada menos do que uma forma de fugir de suas próprias responsabilidades para com sua existência. Afinal, administrar abstrações tão relativas quanto espaço e tempo, era para ele um esforço extremo para o qual não se sentia devidamente preparado. De qualquer forma ele sabia que não poderia caminhar eternamente sem esbarrar em algo que o trouxesse de volta àquela renegada forma de existência comum a todas as pessoas. Assim, ao continuar caminhando por aquele espaço que ele via como uma vastidão incomensuravelmente vazia, acabou por ser tragado para dentro do insuportável mundo repleto de referências no qual vivemos; e teria sido levado à loucura se a loucura maior não tivesse sido a que dele se apoderou para poder materializá-lo novamente: por um lapso ínfimo de tempo ele deixou de ignorar o mundo e a primeira coisa que viu foi o outro vindo em direção contrária a que ele ia. O outro era ele, mas ele ainda não sabia disso. Levaria ainda algum tempo para que ele entendesse o quanto o outro estava perto de ser ele. Desacostumado de olhar este mundo, foi preciso ensandecer-se para poder se permitir chegar próximo de si mesmo no outro. E não foi uma aproximação fácil, já que, retornando ao mundo, com ele voltavam todos os medos, angústias e, principalmente, as barreiras físicas que ele construiu para se defender sabe-se lá de quê (dele mesmo, talvez). Então o outro que era ele, por ele passou e o arrastou no olhar de quem reconhece a si mesmo naquele outro armado por quem ele passa. E esperou, com paciência oriental, que ele chegasse mais perto. E ele caminhou, lento e desconfiado, sem saber como agir, ornando armadura, espada e escudo, como quem parte para uma batalha completamente apavorado com a derrota certa. Mas ainda não sabia que sucumbiria aos encantos de si mesmo no outro. E o outro, parado, estava desarmado ou, talvez, armado apenas daquele olhar que queimava como um fogo frio; mais tranqüilizador do que atemorizante; mais brilhante que sombrio; mais elucidador do que mistificador. E tinha uma aura branca, talvez uma ilusão reforçada pela cor da roupa que vestia, mas que tinha o poder de fazer cair todas as defesas e transpor as inexpugnáveis fortalezas com as quais ele se vestia. Então ele e o outro se encontraram frente a frente. Não trocaram qualquer palavra, mas que discurso vinha dos olhos do outro! E assim, parados diante um do outro naquela avenida movimentada que fazia parte daquele real insuportável para ele, se olharam fixamente durante longos segundos. E se aproximaram lentamente um do outro, num ritual no qual ele se despia da armadura e se deixava envolver pela aura do outro, ficando os dois cada vez mais nus e parecidos na sua nudez, até se tocarem e se tornarem apenas um, num momento em que se amam profunda e longamente e nada mais existe novamente ao seu redor, embora agora já não exista mais o vazio incomensurável e sim a multidude de cores e formas, e mesmo as outras pessoas, agora comuns e sem significado qualquer, pois eles se bastam no instante do amor que se faz despudoradamente público, mas divinamente puro, e tão puro que ninguém presta atenção neles, porque agora é o mundo que olha para o lugar onde eles estão e nada vêem a não ser, talvez, uma luminosidade pálida de algo como um anjo pousado naquele instante do real subitamente suportável para ele, já que anulado pela própria libertação de si mesmo no outro. Quando já saciados, eles se separam ritualisticamente, da mesma forma como se aproximaram, e o que existe já não é só ele ou o outro separadamente, mas sim ele no outro que parte e o outro presente dentro dele, que segue por aquela realidade que já não tem de ser suportável ou não: apenas é, e ele existe apesar disso.

Flávio Moreira
19/03/93
15:40

Flake of Paint


The yellowish paint that had once been white was peeling off the wall, right there in the corner, in the gap between the bed and the bookshelf, where reposed the eternally half-read books, which would never be read to their very end.

There lay him, gazing at that piece of wall squeezed in that gap, with the flaking paint, struggling to hold back the urge to extend his hand to try and peel off a large piece of it. It was an urge like that of a child who, sitting in a corner for having unintentionally broken the vase with mother’s beloved plant, feels to invent mind games after a long time of punishment imposed by such an inconsiderate mother.

But he did not touch the paint. After all, it was too cold outside the blankets, even to stick a small finger out. Only the head was uncovered, otherwise he would suffocate. His expression was not easy to be read: it was a far-away look, making it impossible to distinguish either happiness or sadness. It looked much more like the face we have after having overslept and, when opening the eyes, stare at the emptiness, too lazy to wake up. Yes, that is what it was: the expression of someone emerging from slumber. From a dreamless sleep. And yet he no longer could recall his dreams, neither dreamt nor daydreamed.

Perhaps if he pulled off a flake of the paint he could remember something, as if to dig it from some time in the past. Memories, sometimes, must be fished out from our heads, otherwise they will sink in a lost marsh in our minds.

So there he remained staring at that flake of paint coming off the wall, wanting to pull it off, but not plucking the courage to do so. Dozing while thinking of not thinking. And when he opened his eyes and saw the flake he thought about it without thinking about it, wanting to pull it but not figuring out if he should.

Then the hand slowly crawled out the blanket. It was drizzling cold, but the hand went on anyway. It crossed the empty space between the bed and the wall, through the gap in the half-read or unread books on the bookshelf, and when it was about to touch the flake, a spider closed in —one of those mosquito-and-smaller-insects-eater spiders. For a while, a very short one, the hand move forward then suddenly froze. The spider did the same, at a distance it probably considered to be safe from that huge hand, which looked very much like a hairless spider. It observed the hand, frozen a few centimeters away, not feeling intimidated or aggressive. Indeed, it was studying that other huge spider with the proper calm of meticulous predators, that unexpectedly jump on their victims offering them no means of disentangling themselves.

For a long time they stayed like that: the hand going for the memory stuck in the time/space-lapse between the bed and the wall and the bookshelf, blind to the spider that attentively observed it, almost curious, as if evaluating whether it was worthy to charge that immense creature, if not to effectively attack, at least to learn its reaction. Suddenly the hand resumed the movement, almost faster than the spider itself could expect, or were. It became rigid as if to strike and dashed off behind the bookshelf, while the hand continued en route to the wall, to that spot, to the flake of paint, possessed with a strong disposition to rip it off, just to remember the time when, as a child, he was afraid of spiders, even a small one like that which now flew away from the frightening big hand that was actually completely unaware of it.

The hand took off the flake of paint and behind that piece of synthetic material there was another colour, older, more ancient than you could imagine. There were uneven patterns drawn on that fragment. Uneven patterns, sure. They were formed by the grooving left by the dried mortar behind it. It looked like the glowing surface of the full moon seen through a medium-range telescope. The lamp light shone on that tiny piece of the universe, where he now stepped on with his bare feet, feeling the cool granular texture on the sensitive spots of his soles. If he squeezed the eyes a bit, he could even see the earth down here. It was even possible to sit on the ridge of any of those grooves and gaze down at that beautiful blue round ball there. Forcing the eyes a bit more it was possible to see the area in the continent where his house was. An extra effort and there it was: the city, the neighbourhood, the house, the bedroom and the figure lying in bed with the arm stretched towards the wall, the hand stopping in front of the spider then suddenly moving on and scaring away the aracnid; taking the flake of paint off the wall, closing the eyes, feeling the cold ruggedness of the surface on his soles, the wandering over lunar soil of the flake of paint, seeing the back of that figure sitting at the ridge of the groove watching the blue planet down there, locating the continent, the city, the neighbourhood, the house, the bedroom, the bed, the hand, the fast fugitive spider, the flake of paint, the lunar surface, the back, the eyes, the dreams…