28 de abr. de 2009

Preâmbulo quase dramático de uma noite de insônia

Me sinto vazio como de outras vezes, quando ando perdido pela cidade. A noite fervilha em cores, corpos, copos, cortes...
Tenho a profundidade das ravinas no coração; um coração apertado, um suave ou silencioso desespero. A noção que eu tinha dos rituais perdeu-se no desfoco orgânico do cristalino, agora mofado como a música de Cat Stevens, depois Beatles, que se arrasta no rádio, em meio ao ruído das colheres nas xícaras e as vozes no café de esquina; entre o "michê-point" e os carros de luxo.
Tenho parágrafos perdidos nas alamedas da mente. "Nothing is real". E eu tão pedante tentando desacreditar da minha auto-piedade. Querendo ser indulgente comigo, como a formiga e a cigarra. Só então me dou conta de que já fui mais corrosivo em outras épocas, antes do brilho mágico e cortante das palavras ter se apagado e o aço-ácido das idéias ter sido subitamente neutralizado pela cinematográfica sucessão de imagens que eu sei que entendo, mas dissimulo, me escondendo atrás da parede imaculadamente branca da alienação.
Vejo criaturas noctívagas entregues ao ventos das circunstâncias enquanto as observo, sem enxergá-las, assim um pouco encolhido no meu canto, refugiado em um resto de chá com limão quase gelado.
Sinto saudades do tempo em que tinha emoções e, através delas, me permitia escrever. Hoje tenho fiapos de emoção que não movimentariam o mais sensível dos sismógrafos, e as palavras são apenas fragmentos de algo maior, a muito perdido, esquecido, oculto.
Isto não é uma "bad trip", como se diz no jargão modernoso da geração inerte deste tempo de sombras. E não pretendo entrar numa: já viajo o suficiente na toxidez do dia a dia. Quero não ficar amargo, nem triste. Quero estar calmo e tentar alguma paz enquanto acredito ter consciência de estar vivo, sob o sol escaldante do princípio do inverno, às quase duas da manhã.
A madrugada é fria, mas quero não ceder à tentação do olhar que me busca - que busco - sabendo mesmo que estancarei à margem de qualquer tentativa de resistência. Mas não estou em condições de me apaixonar. Entretanto tenho algo insistentemente humano, carnal, que me faz oscilar entre o existir e o não-ser, sorvendo o último gole do meu chá com limão e sentindo uma dor incômoda descer pelo peito, meio angústia, meio desespero, percebendo o abismo crescer por dentro.
Mudo de lugares: do café ao bar como um vampiro. Caio no jogo vadio das coincidências e volto ao passado, me surpreendendo ao ver que as emoções emboloradas não apodreceram por completo com o passar do tempo. Nem tão pouco maturaram: estão congeladas numa tessitura qualquer de tempo, emergindo adimensionais e repentinas, porém sem susto. Fito, e o que vejo não sei dizer se é a ternura envelhecida de outros tempos ou apenas uma projeção pálida da minha total apatia emocional. Ignoro tudo e aguardo, extático, o surgimento de alguma coisa nova numa madrugada qualquer de maio.

Flávio Moreira
sem data (maio 88, talvez)

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