27 de mar. de 2010

Sobre o Diálogo

O diálogo pede solidariedade silenciosa a seus participantes, num acordo tácito em que um concorda em calar-se para que a voz do outro se manifeste. E nessa intercalação de silêncios de um e de outro vai-se construindo a troca, não só daquilo que é dito, mas também daquilo que permanece quieto, mas não oculto: o respeito, a atenção, e, principalmente, a reflexão.


Extraído de carta a uma amiga, com quem a conversa é sempre um ato de solidariedade.

7 de fev. de 2010

Tijolos (muro à deriva)

(da série de textos perdidos)

Quando passamos do ponto
(Nunca sabemos quando)
Não sabemos do tempo que vivemos
Como quem viveu sem o saber
Desconhecemos o que em nós era conhecido
Em sua cotidiana presença
Banalizando em nós o ato contínuo de existir
Coisas doloridas comprimindo a razão
E devaneio lasso no lapso do momento
Instantâneo desfocado do instante em que insisto
Escapada às cegas no nevoeiro das palavras
Nebulosas distantes de idéias
Vago, fogo-fátuo, vácuo, vórtice infinito
Susto! Pânico súbito diante da emoção
Suspeita, culpada, vadia, perdida
Quase instalada, à espera, à espreita
Mirando no alvo de minha veia indefesa
Delírio, febre, lava subindo o esôfago
Ânsia, , água, nojo, alívio, vazio, oco
Nada
Eu.

(09/05/1992, escrito no ônibus, indo de São Paulo para o Rio de Janeiro)

Abandono

(da série de textos perdidos)

Todos os dias, sentado, parado, calado
Espero o abraço, a chegada de alguém.
Cansado, ainda calado, me esquivo do soco.
Amarrado, enforcado, a resposta largada...
Pés e mãos atados diante dos fatos.
Observador, sou observado, perscrutado, analisado...
Ave louca, na grade da prisão, me debato.
Preso, não canto!
Solto, fazem alvo de meu coração.
Penugem dourada, feneço, esqueço os martírios
- Inesquecíveis algozes.
Matéria pesada, ferida, inerte, atirada ao chão,
Não consegue se erguer.
Pisoteada, marcada, cuspida - tenho asas partidas
E a voz travada na garganta
- Canora ave que não canta.
E esplendor do vôo, o ouro das asas
Me foram roubados;
O doce da voz o fel dos homens amargou.
Corpo ferido, peito silenciado, coração lacerado...
O que me resta?
Não sei...
A primavera chegou e só o espírito paira, agora,
Sobre o que já fui um dia.
Apenas com ele vôo, apenas ele existe.
A matéria, a caixa, essa jaz destruída, abandonada...
O corpo aniquilado repousa, imolação feita de chamas
Para que, talvez, das cinzas, surja o corpo novo do novo ser.
A busca (inútil?) de um significado para essa existência...
Durmo em paz,
       enfim.

(18/10/1988, 17:21)

25 de jan. de 2010

Imagem Virtual

(da série de textos perdidos)

Passeando os olhos pelos jardins, descobri que ainda não saí de dentro do espelho. Ter uma janela aberta e uma visão virtual de uma realidade impalpável... que grande mistério. Quem não acreditar em contos de fadas não poderá entender, jamais, "As Aventuras de Alice Através do Espelho". Minha realidade é um outro mundo. Mas não posso provar a todos sua existência. É preciso crer tanto na imaginação quanto na realidade invisível.

Sou um mago passeando pelos jardins dentro do espelho com a minha janela aberta. Assim consigo fazer com que as pessoas, para me entenderem, atravessem o espelho e enxerguem através da minha janela. Poucas conseguiram.

Não sou tão humano para ser comum. A minha imagem é virtual.

(26/10/1986 - 17:35)

Escrito numa época em que pouco se falava em realidade virtual. A virtualidade era, de fato, aquela da imagem que se formava no espelho, um conceito explicado nas aulas de física e do qual já não me lembro dos detalhes - algo como a imagem não se formar na superfície do espelho, mas em um ponto posterior, inexistente na realidade, uma coisa assim. Fica a curiosidade. E a voz de um eu lírico extremamente presunçoso (rs).

De paredes e biscoitos

Viajando no espelho
Abri minha janela
E as borboletas de primavera,
Em migração, me levaram a viajar
Pelo interior do mundo
E me descobri escrevendo em paredes
E comendo biscoitos.

(25/10/1986 - 20h00)

Anulação

E, de repente, não mais que engano
- Um mal-entendido -
Palavras mal colocadas,
Apreensão dos erros cometidos.
Jogo de agressões
Mágoas... mágoas...
Verbalização tresloucada
E sem sentido. Portas cerradas.
A desistência, desinência
Da auto-anulação.
A carência e a solidão e,
De sobra, pro resto,
A dor sinonimando
A auto-flagelação.

(19-20/11/1984)

O Poeta

(da série de textos perdidos)

Numa tarde comum, de um dia comum, saiu por aí o poeta em sua caminhada sem rumo.
Era um poeta comum, de mochila nas costas, idéias de monte na cabeça, pouco dinheiro no bolso, blue jeans, tênis, camiseta, cantarolando qualquer coisa para distrair.

Pegava ônibus, era operário, camponês, otário, mascate e aprendiz de qualquer coisa. É, era um poeta comum. Escrevia o que queria, onde queria; o que sentia, onde sentia. Amava. Era um alguém, um algo assim.

Andava e dançava e corria. Sorria para os outros, mas ninguém entendia. "É um louco", alguém dizia. Não, não era. O poeta amava, brilhava, o poeta brilhava... e como ninguém. Sentava e escrevia, o que desse, o que viesse.

E se descobria e se amava e se facetava. Sim, tinha muitas faces. Era um poeta! Era do mato, mas falava da cidade; era da água, mas bebia vinho; era do broto, mas comia lata; era do fogo e não se embrasava; mas era forte, e resistia.

Brigava mundos por sua palavra. Amava fundo com sua energia. Amava o campo, o mato e a pedra; a água e o vinho; o fogo e a brasa; a flor e o veneno. Era o poeta que se revelava.

Ele era um pássaro em seu vôo pleno. Livre, ninguém o tocava, nada o prendia. Ficava, se queria. Geralmente, partia. Mas deixava sua marca onde passava. Ficava escrita, gravada, talhada na mente das pessoas sua imagem.

Era leve o poeta, flutuava...

Era amigo, mas ninguém o queria. Poucos o amavam, mas amavam. Menos o entendiam, mas quem entende os poetas? Ele se entendia. Se buscava e se perdia; e se achava. Não era bonito, nem feio. Existia.

Estava e não estava, vivia e não vivia. Caminhava. meu Deus, como o poeta andava! Corria léguas e léguas de humanidade. Colhia flores nas pedras de cada coração que achava.

O poeta escrevia e se perdia nas palavras. Erea o poeta uma fantasia.

Hoje ele está sentado em um banco de praça e ninguém sabe seu próximo passo. Para quem olha o mar e entende as ondas, não há caminhos intransitáveis e nem barreiras intransponíveis. Por isso ele hoje está sentado em um banco de praça. Amanhã ninguém saberá dizer onde ele está.

Talvez fique ali mais um tempo; talvez ele logo se vá. Ninguém conhece seu destino, só ele.

O poeta transcende sua própria existência.

(04/11/1984)

20 de jan. de 2010

Se eu pudesse voar (ou "a primeira tentativa de escrever um poema")

(podem gargalhar; além de permitido, o textinho merece: aos 15 anos, com essa bobagem, ganhei na escola o apelido de "homem-pássaro" - como eu nunca liguei para o apelido, não pegou.)

Se eu pudesse voar,
Sem nenhum aparelho,
Voar sem asas,
Voar somente por voar,
Voaria pelo mundo,
Voando sem parar.
Voaria até o mais alto monte da terra
Voaria por cima do mar
Voaria por cima da guerra
Voaria por cima da paz
Voaria além do horizonte
Voaria por cima do cais
Ah! se eu pudesse voar
Voar pelo mundo todo
Voar por cima do lodo
Voar só por voar
Mas se eu pudesse voar
Não gostaria de voar sozinho
Voaria com quem sabe amar
Para não perder meu caminho
(20/05/1980)

Sem título

(da série de textos perdidos)

E já, então, cansado e triste, sento-me à mesa da neutralidade, a me esconder sob este manto roto que é a poesia, tentativa inútil de extravasar-me definitivamente nos desvãos da "city", dissolvendo-me sujo em vapores lodosos de neon. Quisera não sentir tanto e tão profundamente, não exercendo jamais este fascínio sobre as gentes, pois sempre ele vem acompanhado de um temor, de uma repulsa, e eu nunca sei direito que
sensação inspiro. Mas não posso coisa alguma fazer, pois tenho os olhos faiscantes de lágrimas ferventes, que meu coração batido expele de transbordo, como a querer gritar do fundo alagado do meu peito a exumação da culpa que não me pertence: que posso fazer se sinto no fluxo e refluxo de sangue do meu corpo o oscilar constante da insanidade do mundo, que ama e odeia com fúria e mansidão, ou se percebo passando por minha alma, minha mente, minha união toda de corpo e espírito, as emoções correntes como enxurradas? Afinal, que culpa é esta que possuo por ser "humano"?

(09/05/1989 - A propósito de Augusto dos Anjos)

Quase 30

(da série de textos perdidos)

São Paulo, 29 de abril de 1999.
"Parce que moi je rêve
Moi je ne le suis pas"
Quase 30.
Estou sentado diante do computador - esta ferramenta moderna que supostamente deveria facilitar a vida dos homens mas que cada vez mais os afasta de si mesmos -, olhando esta letra "bonitinha" que se desenha sobre a tela enquanto bato sem agilidade nas teclas...

Quase 30.
Estou com um pouco de sono, com muita fome, algum cansaço... Não tirei os sapatos ainda. Está frio e os meus pés nos sapatos estão quentinhos. Está frio e eu estou só de camiseta. Visto, ainda, essa calça jeans de que não gosto, mas que é resistente, que está suja, que neste momento mantém a temperatura das minhas pernas em um nível saudável. Meio vestido. Um pouco desvestido. A sensação da roupa no corpo, a proteção, o calor morno, a brisa fria nos cotovelos... Minhas mãos mornas...

Quase 30.
A música repetido, intencionalmente, no toca discos a laser. "Someday in my life". "Algum dia em minha vida". Algum dia em minha vida minhas lembranças apagadas da noite de 29 de abril, um pouco fria, em que escrevi este texto. O sono, a fome, o cansaço, o frio, o morno, a música, a repetição. Que lembranças serão? O amor esquecido, a passagem do tempo, as areias de minha alma escorrendo pela lisa, fria e brilhante superfície da vida, a sabedoria de não saber mais nada, a não ser o essencial, o incógnito, o que está lá, algum dia em minha vida, e não aqui, neste dia em minha vida...

Quase 30.
Daqui a seis, não, cinco minutos. Uma manhã após uma noite de luar. "Um espetáculo", ouvi do amigo ao apontar-lhe o lume daquela bola no céu, com algumas delicadas nuvens fazendo-lhe moldura sutil como quimera. Sim, espetáculo. Palidez feita de luz um brilho pérola tudo em volta aquático o som apenas uma imagem instantânea para cá das estrelas...

Quase 30.
Um minuto apenas e não haverá mais este hoje. Pronto, o amanhã chegou sem amanhecer seu calor dourado, ainda fingindo ser aquele ontem de um minuto atrás. Amores diluindo-se entre ontem e amanhã, hoje...

Já é 30.
E o meu dia está apenas começando. Agora vou aos sonhos, meus sonhos, meu mundo de sonhos, por que eu sonho...

Boa noite. Bom dia.
(29-30/04/1999)

Manhã de Primavera

(da série  de textos perdidos)

Abri as janelas e deixei o sol entrar...
Era manhã e o frio glacial ruía,
Extertores de geleiras se quebrando.
Minhas mãos mornas, firmes,
Acariciam meu coração,
Pássaro beijado pela poesia,
E este alça vôo alcançando as estrelas.
As emoções pintam cores onde antes havia nada
E, repleto, transbordo de alegria.
A vida se refaz noutra vida
E nela tenho como companheiro o tempo,
Mestre paciente e substância de meu corpo...
Meu corpo galhos, hastes, troncos, folhas,
Ofertas preguiçosas aos raios de sol;
Meus lábios flores abrindo-se ao orvalho,
Palavras perfumes, fragrâncias, odores
- Jardins súbitos revelados -
Minha voz adágios, allegros, andantes
Melodias que a vida me traz.
E os silêncios, pausas musicais,
São discursos afetuosos,
Gestos eloquentes de almas
Que já não carecem de palavras
- Diálogo de espíritos em harmonia -
Reencontros de vidas já vividas.
Abri as janelas e o sol encontrou
Meu coração batendo fora do peito
Porque já não cabia nele
A vastidão da vida...
(19/05/1999 - 07h30)

Reflexos (mentiras desnecessárias)

(da série de textos perdidos)

Me dói esta melancolia sem propósito
Que nasce aqui, neste momento interno.
Assusta-me que este poço sem fundo de sensações
E sentimentos sísmicos neste instante ferva
Como a querer expelir tudo em desespero.
Mas, angustiado, descubro que não é possível
- os poços há muito estão selados pelo amálgama da razão -
Em verdade o que dói não sou eu:
Dói minh alma inteira ante o sentimento impossível
- o que é o impossível? - que em mim por ti existe
Dói esta emoção de ver-te perto
E ainda tão longe que ainda não ouso te dar meu poema.
E até que o ouse ele permanecerá lacrado
No fundo do meu poço-coração.
(24/03/1990)

Poema para os olhos do amigo

(de uma série de textos muito antigos que se encontravam perdidos)

Mas, ah! menino!
O que é que existe neste teu olhar,
Que olhando assim me inquieta
E me tira o sono?
Que é que se acoberta neste teu jeito
Doce-tímido que olha e queima?
Não te adivinho, menino, mas te percebo.
E de tanto lembrar teu olhar
Dei de ver estrelas no chão do metrô.
De tanto querer saber desta doçura em tua alma
Me encontrei faminto de poesia.
17/03/1990

Abrindo o baú

Ontem (19/1/2010), por acaso, ao procurar uma partitura em casa, encontrei vários textos meus, antigos, perdidos em uma pasta. O duro é que o Blogger não é flexível a ponto de permitir que se insira textos entre textos antigos, ou seja, tudo entra na fila como se fosse um post novo. Um saco. Então, para diferenciar, vou usar o marcador "Do fundo do baú" para designar esses textos. É o jeito...

19 de jan. de 2010

Eutanásia

Estou morto!
Arrefece, meu coração
Não há noite, não há dia
Somente a lâmina fria
Cessa a voz, cala-se a luz
Desfaz-se o corpo, empalidece o sonho

Estou morto!
Enrijeço e enregelo
Só meus cabelos crescem!
Nem medo, nem dor, nem nada!
Soturna chega a noite dos mortos
Com sua cobertura negra e vasta.

Estou morto!
E nessa nau errante
Que no escuro se arrasta
Minh’alma, delida de corpo, vaga,
Erra a vau do Estige sem jamais ter porto

Estou morto!
E meu epitáfio diz:
“Jaz aqui a elidível matéria,
Quão tarde descobriu ser vão
O fogo que ardia em seu peito
Agora o que tem é só chão”

18 de jan. de 2010

Poemeto vadio

Ouro sobre chumbo
Compridos dedos
Apontam o céu
- Cheiro de tempestade -
Na tarde de verão
Visto o pôr-do-sol
E vou olhar estrelas

Às minhas costas, somente a chuva.

14 de jan. de 2010

Testamento

Se eu morrer amanhã...
Peço que não chorem por meu corpo
- Carne fria que se esvairá sob a terra -
Mas que antes do rigor mortis, dêem
Meus olhos a quem ame poesia
E deseje saber a cor do amanhecer,
E meu coração a quem saiba amar
Certamente melhor do que eu jamais consegui
Já os rins (matemáticos)... dêem-nos à Ciência.
Depois de tantos cálculos em tantos anos...

Se eu morrer amanhã...
E minha casa subitamente ficar vazia
Não disputem meus parcos bens:
Dêem-nos à caridade, se algo ali prestar.
Mas se alguém uma lembrança quiser
Retire aquilo que mais justificar
Minha permanência em sua memória.

Se eu morrer amanhã...
Não chorem, não poderá ser dia de tristeza.
Se parti foi porque vivi o tanto que me cabia
E minha estrada aqui, enfim, terminou.
Dêem uma festa, leiam poemas, cantem e riam.
Contem piadas e tomem bastante café. Juntem as alegrias
E divirtam-se como se não houvesse amanhã

Se eu morrer amanhã...
Por favor, continuem vivendo.
Sonhem, amem, realizem-se.
Vocês viverem o melhor de suas vidas
Será minha melhor despedida
Se eu morrer amanhã.

(17h31)

12 de jan. de 2010

Cacto

Gritar! Não mais...

Se em silêncio sementes sulcam caminhos
Para o campo aberto abastado de sonhos,
Adormecido na terra está o verbo.

Plantado em nada, tudo rasga o chão duro
Em que se alternam - altivos - atávicos fantasmas,
E brotam flores rubras de angústia e fogo.

Ardem efêmeras palavras e ligeiros sentires.
E fenecem ambos no causticante verão

Calar, apenas...