25 de abr. de 2009

Lasca de Tinta

A tinta amarelada, que um dia fora branca, estava soltando da parede, bem ali no canto, no vão entre a cama e a estante, onde estavam os livros eternamente iniciados, mas que jamais seriam lidos até o fim. Ficava ali olhando aquele vão da parede com a tinta descascando, contendo a muito custo a vontade de estender a mão até lá e puxar, para tentar tirar uma grande lasca sem quebrar muito. Era uma vontade dessas de criança mesmo, que fica sentada no canto, de castigo, inventando coisas para fazer naquele pequeno mundo de tortura solitária imposta por uma mãe um pouco menos compreensiva com a criança que entrou correndo estabanada pela sala e acabou derrubando aquele vaso com sua planta preferida. Mas não tocava na tinta. Afinal estava frio demais fora das cobertas para se colocar até mesmo um mindinho para fora. Estava só com a cabeça descoberta, porque senão sufocava. Não dava para dizer que expressão era aquela no rosto: estava distante, mas não poderia saber se estava triste ou alegre. Parecia mais aquela cara que a gente faz quando dormiu muito e que, quando acordou, ficou olhando para o nada, com preguiça de acordar. É, era uma cara de quem olha pro vazio saído do sono. Um sono sem sonhos. E já não lembrava mais os sonhos, nem os dormidos nem os acordados. Talvez se puxasse uma lasca daquela tinta pudesse lembrar alguma coisa, assim como que para tirar algo do tempo passado. Lembranças, às vezes, precisam ser tiradas à força da cabeça da gente, porque senão afundam num pântano qualquer da mente. Então ficava ali olhando aquele pedaço de tinta saindo da parede e querendo puxar, mas sem coragem. Dormitava enquanto pensava em não pensar. E quando abria os olhos via a tinta e pensava na lasca sem pensar nela, querendo puxá-la sem saber se devia. Então a mão foi se arrastando devagarinho para fora do cobertor. Estava frio, mas a mão continuou assim mesmo. Atravessou o espaço vazio entre a cama e a parede, pelo vão da estante dos livros semi-lidos ou não lidos e, quando ia tocar na lasca de tinta, viu se aproximar uma aranha, dessas que comem mosquitos e outros insetinhos menores. Por um instante, muito curto, a mão avançou e parou repentinamente. A aranha também parou, a alguma distância que ela considerava segura, daquela mão enorme, mais parecida com uma aranha sem pelos. Ela observava a mão parada a poucos centímetros dela, sem estar intimidada ou mesmo agressiva. Estudava aquela aranha enorme diante dela, com a calma dos predadores meticulosos, desses que saltam sobre suas vítimas quando elas menos esperam, sem oferecer-lhes qualquer possibilidade de desvencilhamento. Ficaram assim por longo tempo: a mão que ia em busca da memória parada naquele lapso espaço-temporal entre a cama e a parede e a estante, cega para a aranha que a observava de maneira estudada, quase curiosa, como se ponderasse se valeria a pena investir contra aquela criatura enorme à sua frente, senão para atacá-la, ao menos para saber como reagiria. Foi quando a mão começou a avançar, quase mais rápido do que ela poderia mesmo esperar, ou até do que ela mesma seria. Se armou toda, como quem ia dar o bote e sumiu num piscar de olhos por detrás da estante, enquanto a mão prosseguia o seu caminho até a parede, ali, na lasca de tinta, agora disposta mesmo a arrancá-la dali, para lembrar o medo que sentia de aranhas quando era criança, mesmo dessa pequenina que agora corria da mão assustadoramente grande que parecia ameaçadora, mas que a ignorava completamente. Puxou a lasca de tinta e atrás daquele pedaço de material sintético havia outro pedaço de uma cor antiga, mais antiga do que poderia imaginar. Havia grafismos esboçados naquele fragmento. Que não eram ordenados, é lógico. Eram formados pelos sulcos do cimento misturado com a areia que estavam secos atrás dele. Parecia a superfície brilhante da lua cheia vista com um telescópio de média potência. A luz do abajur iluminava aquele pedaço de universo onde agora caminhava com seus pés descalços, sentindo aquela granulação fria nos pontos reflexos na sola dos pés. De olhos fechados dava mesmo para ver a terra aqui embaixo. Dava até para sentar na borda de uma saliência qualquer e ficar olhando aquela bola azulada bonita lá embaixo. Apertando um pouco os olhos foi possível localizar a área do continente onde estava a sua casa. Se esforçando mais um pouco dava para ver mesmo a cidade, o bairro, a casa, o quarto e a figura deitada na cama, com a mão estendida para a parede, parando diante da aranha; avançando súbita e assustando o inseto; retirando a lasca de tinta, fechando os olhos, sentindo o frio rugoso da superfície na planta dos pés, a caminhada pelo solo lunar da lasca de tinta, as costas daquela figura sentada na beira da saliência observando o planeta azul lá embaixo, localizando o continente, a cidade, o bairro, a casa, o quarto, a cama, a mão, a aranha em fuga rápida, a lasca de tinta, a superfície lunar, as costas, os olhos, os sonhos...

Flávio Moreira
18/5/93
21:35

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